TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 9 - Setembro 2009
Ensaio - Ronald Augusto


No ambíguo tempo da arte verbal

Em poesia, uma analógica se projeta sobre um arcabouço lógico-discursivo. Em outros termos, a poesia parece, mas não é. Com efeito, embora o poético-literário tenha a palavra como signo fundamental, sua práxis não é a mesma dos demais discursos verbais. A poesia parece dizer – e diz –, mas no fundo não diz, isto é, não é capaz de dizer algo que se enraíze em máxima, prescrição moral, lição, etc. E, em razão disso – e fiquemos apenas com este exemplo –, o real que ela escrutina e ao mesmo tempo finge nos desvelar, comparece aos nossos olhos vertido em imagem indecisa e, no mais das vezes, conflitante com aquele real que até há pouco julgávamos conhecer como a palma da mão.

O poder e os conflitos ideológicos interessam à política e são administrados por ela; a religião se ocupa dos dogmas e de sua eternização; a filosofia tenta, pela palavra, interpretar o Ser e o real; a história volta-se para o que foi com vistas a compreender o presente. Isso quer dizer que, à margem das certezas ou, até mesmo, das imposturas construídas por essas formas de discurso, não resta à poesia senão a dimensão equívoca da linguagem e sua beleza. Numa época em que o consenso degenera com facilidade em fundamentalismo, o dissenso da poesia, embora involuntariamente, talvez tenha algo a dizer sobre esse estado de coisas.

Onde predomina a função poética da linguagem, temos como resultado uma mensagem mais ambígua. Jakobson: “a ambigüidade se constitui em característica intrínseca, inalienável” da poesia. Portanto, continua o lingüista, não só o próprio poema, mas igualmente seu destinatário e seu remetente se tornam ambíguos. No poema, de maneira geral, o sujeito ou melhor, o ego scriptor vacila. A propósito, uma pergunta de Friedrisch Nietzsche: “porque não somos irônicos com o sujeito, como o somos, p.ex., com predicado e o objeto?”. As ficções ou os dogmas da gramática.

Um trecho do livro Obra em Prosa, de Fernando Pessoa: “Todo o material da arte repousa sobre [o sentido de] uma abstração...”. Ou seja, os limites materiais da linguagem condicionam o modo de representação da arte que lhe é correspondente. Consideramos o suporte como balisamento represantacional. O mundo representado pelas artes é um mundo parcial, imperfeito. Mundo emoldurado pela linguagem. Imagens lacunares. Meios frios, de baixa definição. O leitor-fruidor investe sua cota de imagem-pensamento preenchento os vazios constitutivos dos discursos artísticos. Pessoa ainda argumenta: “a escultura desdenha a cor e o movimento; a pintura desdenha a tridimensionalidade; a poesia baseia-se na palavra, que é a abstração suprema, e por essência, porque não conserva nada do mundo exterior, porque o som acessório da palavra não tem valor senão associado (...). A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstração da realidade, tenta reaver a realidade idealizando. Na proporção da abstração exigida pelo seu material, está a proporção em que é preciso idealizar. E a arte em que mais é preciso idealizar é a maior das artes”. Sendo assim, como corolário ao raciocínio de Fernando Pessoa, a poesia é a maior das artes.

No capítulo IX da Poética, que trata da questão da verossimilhança, Aristóteles diz que não é ofício do poeta contar as coisas como sucederam, mas como desejaríamos que houvessem sucedido, e tratar o possível segundo a verossimilhança ou segundo a necessidade. Mas, segundo que “necessidade”? Ora, segundo a necessidade ou a lógica íntima do texto; na literatura da alta modernidade as questões estético-formais participam de maneira decisiva na economia dessa necessidade. Alguns estudiosos da Poética argumentam que o interesse da poesia volta-se para o a-histórico e o a-metafísico. Ela evade-se tanto do real, isto é, do contingente e do particular, quanto do universal absoluto que aponta para o território da filosofia. Juan García Bacca define o fenômeno literário como “interpretação e vivência optativa do universo”. O poeta representa o real, não a partir dos seus afetos, paixões e sentimentos; nem a partir da razão, mas a partir da opção, a partir do seu desejo (que escolhe um mundo pela imaginação, uma supra-realidade).

Uma metáfora para o texto obscuro ou hermético: o sentido é mal e mal tangido pela linguagem, como a harpa eólia é tangida pelo vento. Nesta imagem, pensamento, vento e linguagem formam um compósito conceitual interessante. No processo performativo da linguagem, aparas de sentido chegam à superfície. A este propósito podemos citar uma reflexão do autor de Le Cimetière Marin que diz o seguinte: “Se pois me interrogam acerca de que eu ‘quis dizer’ em tal poema, respondo que eu não quis dizer, mas que quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse...” (Paul Valéry)

O poema “obscuro” não significa uma fuga deliberada, covarde, ou por “incompetência comunicativa”, ao significado ou ao referente; mas uma busca por novos e insuspeitados sentidos. Forma e conteúdo são inseparáveis. A literatura não é uma janela para o real. A literatura e a poesia mais ainda, propõem sentidos prováveis para o real.

O texto poético é sempre incompreensível, no sentido em que não se acomoda numa última interpretação, isto é, demanda leituras (confrontos, pontos de vista, réplica e tréplica, etc.) e releituras que são irredutíveis ao sujeito-leitor que as produz. Exemplo de um fragmento de texto (aparentemente) compreensível: vejo o sol se pôr. Agora, exemplo de um fragmento de texto (aparentemente) incompreensível: o sol num triste soslaio. Ao lado da ambigüidade desta última mensagem ainda permanece seu viés de arbitrariedade (pois ainda é a tentativa de transformar o simbólico a palavra em icônico o “sol” como que atravessa o sintagma até “se pôr” de maneira anagramática no vocábulo SOsLaio), mas por outro lado ela se relaciona por analogia, em função de sua opacidade, com essa coisa que não pode ser mesurada nem medida, essa coisa imprecisa que vem a ser o próprio tecido do real e sua rede nervosa, sensorial. O real como um complexo sinestésico. Produto dos sentidos (nas duas acepções).

Um desenho do evento do pôr-do-sol vale mais de que mil palavras. Mas, imagine-se o imenso esforço intelectual e o dispêndio de tempo exigidos até que o homem conseguisse conceber e, além disso, pronunciar foneticamente esta frase-estrutura, e, depois, materializá-la em caracteres ou grafemas que fossem suficientemente simples e indicativos a ponto de transmitirem uma mensagem idêntica ou, no mínimo equivalente àquela que o desenho e, talvez, a gestualidade, já haviam dito de maneira compreensível na sua relação mais direta, isto é, icônica, com o objeto.

Vejo o sol se pôr: não se trata de uma frase realista ou que, supostamente, diga/descreva certa realidade de um modo direto e inequívoco, pois se a submetermos a um exame mais atento, e de um ponto de vista semiótico, ou que escape ao “automatismo psíquico”, concluiremos que estamos diante de uma representação por convenção e contigüidade, pois a relação entre o objeto e os signos é arbitrária. Contra essa arbitrariedade, a dimensão literária ou poética do signo verbal arremete o tempo todo em luta vã.

A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma aparente scriptio plena. Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Neste breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora, vencido pela fome, os cadáveres dos próprios filhos e netos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino comeu ou não a carne dos seus filhos e netos em Fevereiro de 1289?, Borges responde mais ou menos nestes termos: Dante não quer que o leitor pense que Ugolino praticou canibalismo, mas que disso suspeite. Isto é, a culpa presumida de Ugolino - preso no Inferno de Dante e não no da História - encontra-se num ponto indecidível de nossa imaginação: “Basta que a julguemos possível”, observa Luigi Pietrobono. Voltemos mais uma vez a argumentação de Jorge Luis Borges, “No tempo real, na história, sempre que um homem depara com diversas alternativas opta por uma, eliminando e perdendo as outras; não é assim no ambíguo tempo da arte, que se assemelha ao da esperança e ao do esquecimento. Neste tempo, Hamlet é prudente e é louco”. Consideremos, agora, alguns tercetos do episódio de Ugolino:
A boca levantou do vil repasto
aquela alma, limpando-a no cabelo
do crânio que ela havia por trás já gasto.

E começou: ‘Medonho pesadelo
queres que evoque, e o coração espavente,
antes que o diga, só de concebê-lo’ ”.
(trad. Italo Eugenio Mauro)

Dante instiga ou ludibria a imaginação do leitor, apresentando logo no primeiro terceto a sombra de Ugolino devorando o crânio do seu suposto traidor, o arcebisbo Ruggieri. A imagem pode induzir à leitura de que Ugolino talvez tenha devorado os corpos de seus filhos e netos, embora não a suporte em definitivo. É uma espécie de finta, de recurso dramático, prepara, tensiona, e até mesmo, manipula a emotividade do leitor. É preciso ter estômago ou ser um monstro para comer esse “fiero pasto”.

No terceto seguinte, o fragmento “Medonho pesadelo queres que evoque...” é a tradução para “Tu vuo’ch’io rinovelli disperato dolor che’l cor...” (o grifo é meu). Ugolino se desespera ao re-contar, ao renovar, isto é, ao trazer à tona novamente a dor que apavora seu coração. Contar, evocar, renovar o acontecido por meio da memória, etc., apontam para os sentidos originários de novela, isto é, narrativa, conto, etc. A audiência quer que Ugolino rinovelli sua dor para que ela (a dor) se converta em símbolo.
Quando a luz inda escassa se apresenta
no doloroso cárcer, meu semblante
nos quatro rostos seus se apresenta.
Mordi-me as mãos de angústia delirante.
Eles, cuidando ser da fome o efeito,
de súbito e com gesto suplicante,
disseram: ‘menos mal nos será feito
nutrindo-te de nós, pai: nos vestiste
desta carne: ora sirva em teu proveito’ ”
.
(trad. J. P. Xavier Pinheiro)

O tradutor, nesta passagem, atenua o que, em Dante, soa mais áspero e menos alusivo (podemos supor que o tradutor levou em consideração para a sua solução as questões de ordem métrica). Senão, vejamos: Ugolino morde as próprias mãos, ferido pela angústia de ver seus netos e filhos definhando. Por sua vez, eles interpretam sua atitude cuidando ser efeito da fome. No original, eles concluem que seu avô e pai procede assim per voglia di manicar. Por vontade de comer. O verbo manicar é cognato de manducare, mangiare.

No entanto, quando Dante atinge o momento extremo do episódio de Ugolino, e sempre tirando proveito dessa dialética, desse jogo de avanços e negaceios, o poeta florentino propõe um verdadeiro “verso aberto” (opera aperta) onde o desfecho resta em suspenso como um acorde dissonante. Dante recua daquele momentâneo “realismo” algo cruel, e convida o leitor a se equilibrar neste fio hesitante que diz respeito ao julgamento de Ugolino: Poscia, piú che’l dolor, poté’l digiuno. O poeta deixa de lado a scriptio plena, mais estável, mais apta a pôr as coisas em seus devidos lugares. O verso da Commedia não condena nem absolve Ugolino.

Ronald Augusto é poeta, músico, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kanhamo (1987), Vá de valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No assoalho duro (2007). É editor associado do website Sibila. Dá expediente nos blogs poesia-pau e poesiacoisanenhuma.